Capítulo setenta e cinco

sexta-feira, 1 outubro 2010 § 1 comentário

O açougueiro sua vida inteira nunca tinha visto um boi vivo, mas ele era feliz mesmo assim.

Capítulo setenta e quatro – Transitoriedade

terça-feira, 27 abril 2010 § 4 Comentários

A loja ainda sustentava a velha placa amarelada dos tempos em que ainda era uma das maiores do ramo de calçados. Mas todos os donos que por ali passaram nunca se preocuparam em modernizar o estabelecimento, nem mesmo quando as vendas começaram a cair, perdendo clientes para as vizinhas que estavam sempre em sintonia com o mundo da moda. E nem mesmo quando tiveram que vender parte do imóvel para saldar dívidas.

Agora o lugar tinha um terço do tamanho original. E apenas um funcionário, que não tinha muito trabalho a fazer com tão pouco movimento.  Somente alguns clientes mais antigos ou interessados em alguma rara promoção ainda freqüentavam o local.

Foi numa dessas tardes de verão, de muito sol e poucas pessoas nas ruas do centro da cidade, que uma mulher, interessada em um sapato barato na vitrine empoeirada, entrou na loja, sendo muito bem atendida pelo funcionário entediado. Ela mostrou-lhe o modelo da vitrine em que estava interessada. Disse também que calçava o número trinta e sete.

O vendedor foi até os fundos da loja e voltou uns cincos minutos depois com a caixa na mão. Ao provar, ela notou que o sapato ficou ligeiramente folgado:

– É melhor tentar um trinta e seis.

Foi novamente buscar outro par de sapatos. Foi sem pressa, afinal não era como os outros vendedores que corriam para atender vários clientes.

– Aqui está o trinta e seis.

Aquele par também ficou grande:

– Tem certeza que esse é trinta e seis?

– É o que diz na caixa – ele não tinha lá muita experiência com sapatos.

– Estranho, sempre usei o trinta e sete.

– Às vezes a forma é grande mesmo.

– Bom, então traz um trinta e cinco mesmo.

Na dúvida ele trouxe um trinta e quatro também. Afinal, sapato é o que não faltava ali.

Mas mesmo o trinta e quatro ficou grande. Intrigada ela começou a olhar os próprios pés e, para sua surpresa, eles estavam diminuindo! Tentou se levantar, mas caiu. Os pés tinham sumido de vez. E o mesmo parecia acontecer com as pernas:

– Ai, meu deus, o que está acontecendo?!

O funcionário não sabia o que fazer. Pensou em chamar o gerente, mas ele nunca estava na loja. E a mulher continuava a sumir. Cada vez mais rápido, já não tinha mais joelhos.

– Socorro! Eu estou sumindo!

– Calma, não deve ser nada. Daqui a pouco passa.

– Passa o quê?!

Ele não sabia. Pensou em levantá-la, mas ficou com medo de que aquilo fosse contagioso.

– Espera aí que eu vou chamar ajuda.

– E vai me deixar sozinha?

– É rapidinho. Não saia daí. – disse sem se dar conta de que a mulher não poderia ir a lugar nenhum.

Na rua não encontrou ninguém. Mas também se encontrasse o que diria? “Olha, dentro da loja tem uma mulher sumindo”? E o que ele poderia fazer? A mulher já teria desaparecido de vez quando chegassem ao hospital.

De repente os gritos pararam. Ele conseguiu correr apenas a tempo de ver o último fio de cabelo sumir. Ficou ali parado, observando perplexo as roupas que sobraram da mulher, tentando entender o que aconteceu.

Ele ficou pensando que aquilo foi algo realmente estranho. O que era de certa forma bom, já que nada acontecia de interessante por ali mesmo.

Finalmente juntou as peças do chão e jogou no lixo. Se alguém aparecesse não ia acreditar numa história tão absurda mesmo. E se fosse um cliente ainda podia achar que a loja era uma bagunça. E naquela situação não podia arriscar-se a perder nenhum cliente.

Capítulo setenta e três – Idéias mutantes

segunda-feira, 12 abril 2010 § 1 comentário

Leninha teve uma idéia naquela manhã enquanto sacolejava no ônibus lotado. Uma idéia das boas, dessas simples, mas que resolvem um monte de problemas. Talvez fosse difícil convencer outras pessoas ajudá-la a por a idéia em prática, mas ela tinha que arriscar. Teve vontade de pular de felicidade e contar logo a sua idéia para alguém, mas apenas sorriu, discretamente. Era um dia frio de chuva fina. Uma idéia é a coisa mais efêmera que existe. Qualquer distração e… puf! Lá se foi a idéia. Por isso Leninha ficou repetindo e repetindo a idéia na sua cabeça até poder anotá-la. Mas a cada vez, ela mudava. Às vezes ficava melhor, às vezes, pior. Leninha já estava ficando aflita, não entendia por que não tinha controle sobre a própria idéia. O seu cérebro lhe enganava. Pela primeira vez na vida, sentiu que estava ficando velha. Assim que desceu do ônibus, Leninha se apressou a abrir a bolsa e pegar uma caneta e o primeiro pedaço de papel que conseguiu achar. Escreveu freneticamente, mas as palavras saíam diferente do que ela queria. A sua idéia já não fazia sentido nenhum. Poucas vezes se viu alguém tão decepcionado e sozinho no mundo. Ao chegar na empresa, quase todo mundo estava meio apático, meio sem vontade de falar com ninguém. Ligou o computador como fazia todos os dias e foi ler as últimas notícias. Jogador de futebol vira cantor sem querer. Estranho. Continuou a ler. Em entrevista concedida essa manhã na Espanha, famoso jogador de futebol anunciou que iria se tornar cantor contra a sua própria vontade. Alegou ter a idéia durante a madrugada e, sem saber porque, achou que deveria seguí-la. Assim que terminou de ler a notícia e antes de ter tempo de entender o que estava acontecendo, Leninha foi surpreendida por um colega dizendo que o chefe decretara que aquele dia era o dia nacional do palito verde e mandou todo mundo pra casa. Leninha tentou ficar feliz, mas o que iria fazer em casa? Resolveu ir jogar fliperama. Merda de idéia, ela não suportava todos aqueles barulhos de videogame e aqueles adolescentes brigando por causa de um jogo. Por sorte o lugar estava vazio, já que o dono teve a idéia de cobrar muito mais caro pra ganhar muito mais dinheiro. A atendente assistia a uma pequena televisão e Leninha resolveu assistir também. Um deputado, conhecido por suas idéias liberais, quase foi linchado por propor que exterminassem os mendigos, os ladrões e as prostitutas. Pedia desculpas incessantemente. Um grupo de ecologistas resolveu queimar uma árvore centenária pra pular fogueira. E nem era junho. O apresentador do noticiário estava nu. Mulheres nuas no Afeganistão pulavam carnaval. O papa se converteu ao budismo. O presidente americano fora preso tentando atravessar a fronteira para chegar no México. Crianças japonesas brincavam de amarelinha. Assim que o programa acabou, começou uma emocionante transmissão de duas horas de duração do aquário da sala do dono da emissora. Ao vivo. Leninha estava mais confusa do que nunca. Por que as idéias estavam se rebelando contra a humanidade? Aquilo que sempre fora o que os homens tinham de melhor, agora os fazia parecer animais idiotas. Ela foi pra casa. Por um caminho muito mais demorado do que o usual. Ao chegar em casa, perto das onze horas, o filho tinha acabado de acordar. Justo ele, que era rapaz trabalhador e sempre acordava cedo. Leninha então contou o que estava acontecendo. Ele achou que a mãe tava ficando maluca. Ela até ligou a tv e o rádio pra provar que não, mas a programação não fazia sentido nenhum. Em todo o caso, o filho, que era escritor, achou que aquela história fantástica daria um bom conto. Sentou e começou a escrever. Estava indo bem, tinha até pensado num final sensacional, mas quando foi escrever o final, o peixe começou a ficar azul e todo aquele que blasfemava contra o telefone sagrado tinha que comer o ovo frito. André subiu até o alto do morro e avistou aquilo que poderia se chamar de avião. Por caminhos tortuosos, continuou a fazer aquilo que sempre fizera:  . Era o terror. Ana já não sabia se devia ou não se casar. Vivia infeliz pra sempre. O mundo devia explodir. Siga em frente a direita e volte. Antes.

Capítulo setenta e dois – Tá tudo errado

quarta-feira, 7 abril 2010 § 2 Comentários

06:15

Percival sonhava que estava numa ambulância quando o despertador tocou. Ou talvez essas duas coisas tenham sido simultâneas – o sonho e o despertador – pois ele demorou pra acordar justamente por que o barulho do despertador parecia a sirene da ambulância do seu sonho. Olhou para o lado e não viu ninguém para contar o sonho.

06:17

Foi enquanto escovava os dentes que Percival teve a revelação: estava tudo errado. Tudo na sua vida foi e ainda era um erro, a começar pela escova de dentes que não alcançava o fundo da sua boca. E a escova anterior era grande demais e machucava o fundo da boca.

07:03

Passou na farmácia querendo comprar uma escova do tamanho certo, mas todas estavam embaladas, portanto não dava pra testá-las. Abriu uma por uma e enfiou na boca até achar a escova certa, apesar dos protestos do atendente.

07:16

De volta à sua casa, largou a nota em cima da mesa (R$57,65 pelas escovas de dente) e foi escovar os dentes demoradamente, apesar de já estar atrasado para o trabalho. Ele odiava ter que entrar todos os dias às oito horas em ponto. Odiava ainda mais ter que ficar 38 minutos dentro do ônibus e mais uns tantos minutos esperando no ponto o maldito ônibus que nunca passava no mesmo horário.

08:00

Na empresa nem sinal do Percival, funcionário do mês como estava escrito embaixo da sua foto na parede.

08:24

Na cozinha, Percival estava tomando o café da manhã, o que não costumava fazer. Mas assim teria uma desculpa pra usar mais uma vez sua escova de dentes nova.

08:45

Percival acabou de decidir que hoje não vai trabalhar. Talvez nunca mais vá.

09:23

Na praça as pessoas estranham o homem balançando no lugar das habituais crianças. É Percival, que tem um pirulito na boca. Deve ter roubado de alguma garotinha. Quando uma das mães vem reclamar com ele, Percival dá um grito e sai correndo. Percival não é mais o mesmo.

10:10

Percival espera 10 segundos olhando o relógio de pulso.

10:10.10 marca o relógio e ele fica feliz. Ajusta o alarme para 11:11.

10:17

Percival liga para a mãe. Quando ela atende, ele diz “você não manda mais em mim”, dá uma gargalhada e desliga. Sempre teve vontade de fazer isso desde que saiu de casa aos 23 anos. Percival tem 37 agora, é o que diz sua carteira de identidade.

10:22

Percival cansa da brincadeira e vai consertar as coisas que acha que estão erradas na sua vida. Tá tudo errado, repete pra si mesmo constantemente.

10:36

Primeiro passou no apartamento da vizinha do prédio ao lado, que ficava sempre limpando a casa e se exibindo pra todo mundo com as poucas roupas que usava e a janela sempre aberta. Apertou a campainha e deu um beijo nela quando ela atendeu. Depois, quando ela ainda estava tentando entender, deu um tapa na sua cara e a chamou de vagabunda.

10:48

Passou na padaria da esquina, entrou com tudo na cozinha e desligou o forno com os pães antes que alguém pudesse fazer alguma coisa. “Eu odeio meus pães tostados”.

10:55

Passou na banca, comprou o classificado de empregos e o deu ao mendigo que todos os dias o importunava pedindo alguma coisa. “É a última coisa que te dou”.

11:09

Entrou no prédio em que ficava a rádio pirata que atrapalhava o sinal da sua rádio preferida. Foi até o telhado e estragou a antena com o martelo que havia comprado na loja de ferramentas um pouco antes.

11:11

Ainda no topo do prédio, o alarme do seu relógio de pulso soou. Olhou até 11:11.11 e ficou feliz de novo. Dessa vez mais feliz por que se ele olhasse de trás pra frente veria a mesma hora.

11:16

Foi até o ponto e ficou esperando com ansiedade o ônibus que pegava todo dia, mas agora era uma ansiedade de coisa boa.

11:31

O ônibus chegou. Mas ele não fez nada com o motorista por que aquele não era o mesmo motorista que passava por volta das sete e vinte e cinco. Uma pena.

12:09

Desceu do ônibus pensando no que faria na empresa. Tinha ótimas idéias.

12:13

Virou a esquina e parou na beira da calçada esperando o momento de atravessar a avenida movimentada. Foi o primeiro momento que ele teve, desde a dita revelação naquela mesma manhã, pra pensar em tudo que tinha feito até agora. Do outro lado da avenida estava a empresa.

12:16

Três minutos esperando e o farol não fechava. Os carros não paravam de passar. Percival, que há muito tempo já tinha perdido a paciência, resolve atravessar a qualquer custo. Na primeira brecha que apareceu – e que ninguém de bom senso se arriscaria a aproveitar – ele começou sua marcha em direção ao outro lado da rua. Todos os automóveis passavam desviando e buzinando e xingando aquele pedestre maluco.

Menos um.

Esse não xingou, não buzinou, não viu e não desviou.

12:24

Na ambulância, Percival não queria pensar em nada. Tinha medo de se arrepender de tudo o que tinha feito naquela manhã. Tinha medo de imaginar que o atropelamento podia ter sido uma espécie de castigo divino por ter renegado a sua boa vida de trabalhador honesto.

Adormeceu sonhando que a sirene – que gritava alto lá fora pedindo passagem – era na verdade o barulho do despertador chamando pra mais um dia de trabalho. Trabalho digno que o levaria, enfim, à sua completa redenção.

Capítulo setenta e um – De novo

quarta-feira, 7 abril 2010 § Deixe um comentário

Pode parecer frescura (e provavelmente é), mas eu gosto de mudar o blog. Aliás, mudar qualquer coisa na vida é legal (desde que por vontade própria, é claro). Daqui uns anos se precisar eu mudo de novo. Por enquanto tô achando o wordpress legal, tem vários recursos e etc. Só me deixa um pouco frustrado eu não poder mexer no código-fonte que nem o blogger deixava, mas eu tô me acostumando. Eu consegui importar tudo o que tava lá no blogspot sem precisar de esforço nenhum, então tá tudo lindo e arquivado aí pra quem quiser ver.

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Já tem mais de sete anos que esse blog existe (contando, inclusive, os dois últimos anos em que ele esteve completamente abandonado). De qualquer forma, é uma coisa bastante duradoura pra uma pessoa que larga tudo pela metade, principalmente quando não tenho nenhuma obrigação. E eu nunca tive nenhuma obrigação quanto à escrever aqui nesse blog (no máximo, talvez, algumas pessoas que gostariam que eu escrevesse mais, por motivos que me fogem à compreensão). E também nunca ganhei nada que não fossem alguns elogios (que me fazem muito bem, obrigado) e uma sensação de auto-satisfação.

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Tem uma pasta no meu computador chamada “rascunhos” onde eu guardo as coisas que eu escrevo. É um nome bem apropriado – pelo menos metade dos textos lá tá escrito pela metade ou só o primeiro parágrafo ou é só uma idéia que eu anotei pra não esquecer. Isso sem contar os meus caderninhos de anotação reais que também têm algumas idéias que eu nunca escrevo. Tem um monte de coisa que eu nem lembro mais como ia continuar, mas vou tentar fazer uns textos a partir desse monte de coisas incompletas, embora eu duvido que vá muito longe minha empolgação momentânea.

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E lá vamos nós!

Capítulo setenta – O quinto poder

terça-feira, 23 março 2010 § 1 comentário

Naquela época eu tinha mudado de emprego, de casa, de bairro, ainda não conhecia muita gente e o contato com os velhos amigos se tornava cada vez mais escasso, por causa da distância e da falta de assunto. Assistir televisão era praticamente a única coisa que eu fazia no meu horário livre e aos fins de semana eu costumava visitar minha mãe, com quem eu reclamava do tédio que eu tinha durante meus horários inúteis dos dias úteis. Meu aniversário logo chegou e minha mãe me deu de presente a assinatura de uma dessas revistas de curiosidades. A idéia não foi ruim, mas a revista me entreteve por apenas dois dias. Pensei então em assinar um jornal pra poder ler todos os dias e talvez alguma outra revista. Tudo isso me manteria, eu esperava, longe do tédio por muito tempo e eu comecei a acordar mais cedo para poder ler o jornal enquanto tomava o café da manhã.

Em poucos dias, os jornais começaram a se acumular em uma pilha no canto da minha pequena sala, aumentando cada dia mais. Havia um velho que frequentemente passava pela minha rua juntando todo tipo de coisas velhas para reciclar, então pensei em dar a pilha de jornais para ele vender, mas ele não quis, disse que jornal dá muito trabalho de carregar e pouco dinheiro. Quase considerei jogar tudo no lixo mesmo, mas um caderno especial sobre reciclagem e aquecimento global me fez logo desistir da idéia. Se eu tivesse um carro, eu mesmo levava para reciclar.

Eu tinha agora duas pilhas de jornais junto com algumas revistas, que se fossem uma pilha só, seria certamente uma pilha mais alta que eu, mas é difícil equilibrar uma pilha de jornais desse tamanho e eu me recusava a me sentir oprimido por um monte de notícias velhas. Ainda era eu que mandava ali, por isso resolvi dar um fim de uma vez por todas naquela situação. Liguei para cancelar minha assinatura do jornal e com o dinheiro que eu ia economizar todo mês poderia pagar as parcelas de um computador. Iria ler todos os jornais que eu quisesse e quando terminasse, não haveria nenhuma pilha de papel.

Os jornais, no entanto, continuaram a vir. A moça me disse que minha assinatura estava cancelada, devia ser algum engano e que nada seria cobrado. Mas eu não me incomodava com a cobrança, eu até pagaria pra não ter mais jornais. Os jornais, no entanto, continuaram a vir. Pensei em acordar cedo pra falar com o entregador, mas ele passou de moto tão depressa que nem me viu.

O computador chegou, mas eu não queria mais saber de notícia nenhuma, eu queria que o mundo explodisse e eu pudesse me ver livre da pilha, que agora eu usava como assento para ficar na frente do computador. Em um site, aprendi a fazer esculturas de papel machê usando os jornais velhos. Eu tinha, porém, mais material do que habilidade. O origami deu ainda menos certo e o máximo que eu consegui fazer foi um chapéu.

Muitos meses depois, eu mal conseguia andar pela casa sem esbarrar em tiras de quadrinhos, políticos corruptos e enchentes no Paraná. Eu também já nem usava mais toalha, me secava com as páginas do suplemento dominical, que, apesar do inconveniente de soltarem tinta, não precisavam ser lavadas depois. E as folhas tinham lá sua utilidade – impedir uma goteira, substituir um vidro quebrado. Melhor ver uma foto da Patagônia do que a rua suja do lado de fora.

E, pensando bem, eu não ia mais precisar do fogão, podia queimar algumas folhas para cozinhar. Quando descobri que em Londres era costume levar comida embrulhada em jornal, me livrei dos pratos também. No inverno, uma boa camada de notícias quentes era melhor que meu cobertor. Os moleques da rua me chamam de louquinho do jornal, mas eu me defendo, jogando bolinhas amassadas de realidade neles. Só jogo as notícias mais cabeludas, que essas doem mais.

Eu sonho com resenhas, notas e gráficos. O Diário marcou uma entrevista comigo, mas eu não entendo, não sei nada sobre escândalos nem tendências. Eu não sou notícia.

Capítulo sessenta e nove – Hábito

terça-feira, 23 março 2010 § 1 comentário

Ele saiu do banheiro, entrou no quarto e encontrou-a deitada no lado esquerdo da cama, já completamente levada pelos sonhos que sonhava dentro da cabeça que estava apoiada no travesseiro. Mas não foi o fato de já estar dormindo que o espantou – havia mesmo demorado no banheiro, entretido com uma reportagem na revista – e sim o fato de ela estar no lado esquerdo da cama.

Dezessete anos. A vida é curta demais para as coisas que deixamos de fazer, longa demais pra aguentar a rotina diária. Dezessete anos não foram nada para o rapaz que não vê a hora de poder dirigir, terminar a escola, comprar cigarro, frequentar um lupanar, ser dispensado do serviço militar. Dezessete anos num mesmo emprego podem ser uma eternidade entediante. Em dezessete anos de casamento, não há nada que não se saiba um do outro – quanto tempo leva pra tomar banho, qual a hora preferida do dia para usar o banheiro, a localização exata de cada mancha na pele, doenças, alergias, vergonhas da infância, a cara que faz quando se preocupa à toa com os filhos, a quantidade exata de sal necessária na pipoca e o lado da cama que dorme.

Alguém já disse (muita gente já deve ter dito, provavelmente) que as pessoas não mudam de hábitos com a mesma facilidade que mudam a cor do cabelo. Por que ela mudou de lado na cama depois de dezessete anos de casamento? Não que os dois tenham jamais combinado qualquer coisa a esse respeito, mas sempre foi assim. E ninguém enjoa de uma coisa depois de dezessete anos, enjoa depois de dezessete dias, dezessete semanas, talvez. Ele não pensou em acordá-la só para perguntar o motivo. Talvez ela estivesse com dor no braço direito. Mas se estivesse, por que não disse? Perguntaria o motivo pela manhã e o problema estava resolvido. Pronto, agora era só dormir e esperar o café da manhã. Alguém já disse que as pessoas não mudam de hábitos com a mesma facilidade que mudam sua opinião sobre o seu filme favorito de todos os tempos.

Meu deus, eu já achei que Tubarão era o melhor filme do mundo! Fui ver Blade Runner quatro vezes no cinema! Agora não sei se prefiro O Poderoso Chefão ou A Lista de Schindler. Acho que tô ficando velho, só gosto de filme de velho. E como é que ela pode achar que Beleza Americana é um ótimo filme?

Tudo isso ele pensava por que não conseguia dormir do lado direito da cama – se virava pro lado direito, não conseguia achar um jeito confortável de deixar o braço direito, se virava pro lado esquerdo, não conseguia respirar direito por causa do cabelo dela muito perto do seu rosto. Levantou e foi fazer um chá.

Ele gostava mais de chá preto, mas a cafeína não ia ajudar em nada a essa hora da madrugada. Fez chá de camomila, que era o preferido dela. Ficou pensando se não havia alguma outra coisa que ela tinha mudado e ele não tinha percebido. Será que essa mudança era um sinal de que ela estava mudando ou queria mudar? Talvez fosse o primeiro sinal de muitos. E em alguns meses, ela o acusaria de ser sempre o mesmo, de nunca fazer nada diferente, de ser o tédio, o velho representando a tradição estúpida, um reacionário. Ele a acusaria de ter outro, de ter vários, de ser promíscua, inconstante, imatura, querendo ser jovem e inconsequente depois de velha. Seria um fim triste para um casamento que se não foi belo, foi pelo menos normal. O chá já tinha esfriado mais que o pé dele. Despejou o chá na pia e decidiu esquentar o pé no lado direito da cama, pois já passava das duas horas.

No quarto, ela tinha voltado para o lado direito.

Capítulo sessenta e oito – A história da história de Joana

sábado, 12 abril 2008 § 8 Comentários

Joana queria contar uma história. Mas tinha que ser uma história total. Uma história que fosse absolutamente real. Uma história absurda, que envolvesse completamente, que não existisse somente no papel, na cabeça, onde quer que fosse.

E os personagens tinham que ser completos. Deviam amar, odiar, se entediar, deviam comer, beber, respirar. Não podiam ser personagens planos, deviam ser complexos, cheios de dúvidas, contradições, ideologias, idéias e defeitos.

Joana queria contar uma história. E não podia faltar nenhum detalhe, a cor do cabelo de cada um, o ano do carro, a marca da geladeira, a tinta descascando na parede, o número dos telefones, os nomes das ruas, a temperatura ao longo dos dias, o tempo que se demorava pra ir de um lugar ao outro, o tom de azul do céu, o tom de verde do mar, quais espécies de animais habitavam cada lugar, cada estrela que nasceu desde que o universo começou. Tudo isso Joana queria contar.

Naquele dia, Joana parou de contar histórias e foi viver a vida.

Capítulo sessenta e sete – Ladainha

domingo, 20 janeiro 2008 § 7 Comentários

É sempre onde menos se espera que se encontra o que não se quer. Minha obsessão por ser diferente tem me afastado cada vez mais e mais e mais e mais das pessoas. Os diferentes envelhecem e querem ser iguais a todo mundo. Querem ser iguais ao que já são. Há segurança em não precisar mudar. Há tédio.

E eu que já sou velho demais pra me meter com adolescentes. Já não tenho mais paciência. Nunca tive paciência, só tenho preguiça. Isso eu tenho de sobra. Mas sempre confundi preguiça com paciência.

O dia-a-dia não me interessa. O fora-do-cotidiano não me interessa. Não quero saber das grandes questões do universo, não quero saber o preço do feijão. Quero me refugiar na ficção. Quero mentiras, quero inventar, quero não querer. O que eu não tenho devia parecer interessante. A grama do vizinho morreu faz tempo. O vizinho é que teima em viver.

Meu vizinho um dia acordou morando em outra cidade. Fato que claramente causou uma baita confusão. Como posso chamar de vizinho alguém que mora em outra cidade? Deveria eu mudar de cidade também? Deveria deixar de chamá-lo de vizinho? Mudar esse antigo hábito?

Tomei o ônibus e desloquei-me até a cidade vizinha pra falar com meu vizinho. Ele não fazia idéia de como se deu essa mudança, mas que até gostava da nova vizinhança. Tentei fazer com que ele visse meu lado. Era justo que continuasse morando do meu lado, depois de tantos anos. E aquela vez que te emprestei açúcar? Quando você foi viajar, alimentei os peixeis do seu aquário. Nunca botei o olho na sua mulher. Nossos filhos brincariam juntos um dia. Nossa casa é geminada, sei de segredos seus, sei da sua índole, seus hábitos, a cor do seu roupão. Não posso ter um vizinho novo. Aprendi a gostar de música clássica ouvindo os seus discos, que você tocava aos domingos de tarde, enquanto eu tentava dormir. Me separo da minha mulher, mas de você não saio do lado. Você é o meu outro, é através dos seus olhos que entendo metade do mundo. Foi com você que aprendi a ser tolerante com quem não é eu mesmo.

Meu vizinho me olhou assustado aquela manhã.

Capítulo Sessenta e Seis – Tudo bem

terça-feira, 16 outubro 2007 § 1 comentário

Ela parou na beira da calçada, os olhos fitando o nada. A avenida movimentada.
Do outro lado da rua, o homenzinho vermelho se impunha, a pose ereta, quase militar, ordenando que todo mundo continuasse parado. Ela baixou os olhos, acostumados a ver o chão. O cadarço desamarrado.
Com muito esforço ela se abaixou para amarrá-los. E as outras pessoas começaram a andar. Ela levantou a cabeça; o homenzinho vermelho tinha ficado verde. É preciso se mover, é preciso andar, é preciso não ficar parado. E os carros faziam barulho, impacientes. A larga avenida à frente e ela ali parada. O homenzinho verde a incentivando a se mexer. Talvez ninguém nunca a tivesse incentivado antes, talvez ela nunca tivesse prestado atenção. Sentiu vontade de sair correndo. O cadarço amarrado, a larga avenida vazia por uns segundos. E correu.

Ela nunca se sentiu tão livre na vida. Ou talvez nunca tenha dado atenção à sua liberdade. O vento na cara, os pés quase não tocavam o chão.
Os carros agoram corriam ao lado dela e buzinavam e gritavam “louca, louca” e xingavam, se assustavam. Era fim de tarde e o sol já tinha sumido atrás dos prédios. Correr. Correr e atrapalhar a vida dos outros. Isso era liberdade.

Já perto da esquina, ela ouviu sinos. Sinos de glória, sinos de vitória. Ou sinos da igreja marcando as seis horas?
Tarde demais ela percebeu que não eram sinos. Eram sirenes. Uma sirene. Ambulância. Vinda da outra rua, acertou ela em cheio quando cruzava a esquina, correndo. Voou até a calçada, batendo forte contra um muro. E que ambulância haveria de adivinhar uma maluca correndo às seis da tarde? (Eram mesmo seis da tarde? O sol se escondia atrás dos prédios.)
E a ambulância nem parou. Quem quer que estivesse morrendo sacudindo dentro da ambulância, provavelmente estava morrendo mais que ela. Ela nunca se sentiu tão viva em toda a vida, a cara sangrando, o corpo doendo.

Alguém haveria de se apiedar da cena patética. E se não, tudo bem. Quem precisa viver mais de uma vez na vida?